A lei está do lado dos pais: não é preciso continuar a pagar as creches

Dois juristas ouvidos pela NiT afirmam que exigir o pagamento de mensalidades de creches encerradas “não faz sentido” legalmente

A questão tem surgido em todos os grupos de pais e os relatos diferentes só tornam a situação mais confusa. Há creches a reclamar mensalidades, escolas que só descontam os valores das refeições e actualmente, cada estabelecimento parece estar a agir por conta própria.

A verdade é que desde o encerramento das escolas decretado pelo governo, muitos pais continuam sem saber o que fazer. Devem ou não continuar a pagar a creche ou a escola, mesmo com os miúdos em casa? O que diz a lei?

Os responsáveis também não têm contribuído para esclarecer a questão. Em declarações ao “Público”, o presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), deixa o conselho às creches IPSS no sentido de uma “diminuição da comparticipação mensal”, embora refira que é necessário saber se, mediante o encerramento decretado pelo estado e consequente “suspensão da prestação de serviços”, existe “dever de pagamento das comparticipações”, embora conclua que não há, de momento, “uma solução uniforme”.

Precisamente no dia seguinte, o vice-presidente da mesma instituição, Eleutério Alves, caminhou no sentido contrário do presidente do CNIS. “O vínculo contratual entre utentes e as IPSS não caducou nem está suspenso”, explicou à revista “Sábado”. E adiantou que o conselho que está a dar às instituições é o de que devem tentar obter consenso com os pais para acordar o pagamento de uma percentagem da mensalidade.

Perante toda esta confusão, a NiT pediu a opinião especializada de dois juristas para responder à questão que todos os pais estão a fazer: têm mesmo que pagar a mensalidade se a escola ou creche assim o exigir?

“Os contratos com estes estabelecimentos são contratos bilateral e tem obrigações e direitos para as duas partes, têm natureza recíproca. Se uma das partes — é certo que por razões objectivas que não lhe podem ser imputadas, neste caso uma situação excepcional de emergência — deixou de prestar o serviço, a contra-parte que beneficia desse serviço não pode continuar a assumir a sua obrigação principal, que neste caso é o pagamento do preço ou da mensalidade”, diz à NiT o jurista Marcelo Delgado.

Contrariamente ao que o vice-presidente do CNIS declarou, ao sustentar que não havia qualquer suspensão do contrato, a opinião do jurista é a de que existe, efectivamente uma suspensão. O que acontece nestes casos é precisamente uma “suspensão do contrato”, provocada pelo facto de a escola ou creche deixar, ainda que temporariamente, de prestar o serviço que lhe cumpria no acordo.

“Essa causa de suspensão não é culpa de nenhuma das partes, mas se há que suspender o contrato, essa suspensão não pode acontecer só para uma das partes — o contrato é recíproco e portanto a suspensão tem que ter efeitos para os dois. Se uma parte deixa de cumprir, é legítimo que a outra parte também deixe de cumprir a sua, que neste caso é o pagamento do preço, até porque deixa de obter o benefício que estava previsto”, nota.

No mesmo sentido vai a opinião de Sónia Covita, jurista da DECO Proteste, que frisa que “se não há um serviço prestado, não há lugar a pagamento”. Ainda assim, a coordenadora do departamento jurídico Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor explica que há situações distintas que pedem uma análise diferente.

“As crianças estão em casa e não há quaisquer actividades ou serviços a serem prestados. Não faz sentido que venham exigir qualquer pagamento”, diz Sónia Covita da DECO Proteste

É preciso, primeiro, distinguir as creches das escolas que adoptaram o ensino à distância. No caso das primeiras, “as crianças estão em casa e não há quaisquer actividades ou serviços a serem prestados” e, nesse caso, não faz sentido “que venham exigir qualquer pagamento”.

No contexto das segundas, quando as aulas continuam a ser dadas de forma remota, há efectivamente um serviço a ser prestado, ainda que não seja equiparável às aulas presenciais e, por isso, a DECO Proteste aconselha outra abordagem.

“Nesses casos, achamos demais que os pais digam taxativamente que não pagam, sendo que poderão negociar com a escola uma redução. Tem que haver um ajuste do valor, haver uma aproximação a um preço que seja razoável”, explica, sublinhando que deverão sempre ser descontados valores de refeições, transporte ou actividades extra-curriculares que não estão a ser prestadas.

Ambos os juristas compreendem a posição de algumas creches que, com despesas de manutenção e de salários de trabalhadores, poderão ter que lutar para se manterem em funcionamento depois do encerramento forçado que ainda não tem uma data limite. Ainda assim, qualquer acordo de redução da mensalidade dependerá “da boa vontade dos pais tentarem negociar para ajudar as escolas neste momento difícil”, diz Sónia. E sublinha que “qualquer exigência de pagamento não é obrigatória”.

“No caso das creches e dos mais pequeninos, por mais boa vontade que se tenha, não se consegue justificar [a exigência do pagamento da totalidade da mensalidade]”. Mesmo que a esse valor seja retirado o preço das refeições e das actividades, “o pagamento integral não faz sentido”.

E se não pagar, o que é que acontece?

A opinião legal dos dois especialistas vai no sentido de que não deverão ser pagas as mensalidades às creches, embora muitos pais temam algum tipo de repercussões negativas. Poderá isso acontecer? “Não é possível perderem direitos de ligação ao estabelecimento de ensino porque não se entra em situação de incumprimento do contrato”, aponta Marcelo Delgado.

É, portanto, da opinião que neste caso concreto, os pais têm “justa causa para suspender as suas prestações”, pelo menos no que concerne a legislação actual.

“Se não pagarmos as mensalidades, talvez [algumas escolas] não tenham como sobreviver”, nota Marcelo Delgado

Fica, contudo, aberta a porta para uma eventual intervenção do governo, que poderá decidir legislar para acautelar a sobrevivência dessas escolas, que continuam a ter que fazer face a várias despesas. “Se não pagarmos as mensalidades, talvez não tenham forma de sobreviver. Nesse sentido, acredito que possa haver um equilíbrio legislativo para forçar os pais a assumir essas despesas, mas sempre com uma redução do valor”, acrescenta.

No sentido de acautelar as dificuldades reais que creches e escolas irão enfrentar, sem prejudicar os pais, Sónia Covito explica que percebem “o lado das escolas”, e que será “difícil manter alguns funcionários” sem os valores das mensalidades, mas que “caberá ao governo tomar decisões que ajudem as escolas, não passando essa responsabilidade aos pais”.

“Dizer agora aos pais, sendo que muitos deles estão em casa com cortes nos salários, que vão ter que pagar uma mensalidade, não faz sentido nenhum”, diz.

A conclusão de ambos os juristas vai no sentido de que a lei está do lado dos pais no caso das creches, onde nenhum serviço é prestado por parte dos estabelecimentos e, por isso, não deve ser feito qualquer pagamento por algo que não é prestado. Mesmo que a creche o exija, o não pagamento não fará os pais entrarem em incumprimento e, portanto, não prejudicará a continuidade no estabelecimento.

Situação diferente é a das escolas com ensino à distância, onde embora o serviço prestado não seja exactamente o que ficou acordado no contrato, há de facto um apoio ao aluno que deve ser recompensado. E à falta de legislação específica do governo, poderá chegar-se a um acordo de uma percentagem do valor acordado.

Este é o ponto da situação, pelo menos até intervenção do governo, algo que ainda não se sabe se irá acontecer.

Fonte: https://nit.pt/out-of-town/miudos/a-lei-esta-do-lado-dos-pais-nao-e-preciso-continuar-a-pagar-as-creches?fbclid=IwAR3NX9OmX9J9n2GWrqfjx-XuIDaaDF0o7God_VbwXXm5mZQMgf1VUs6dTN4

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