Publicado no Observador
Fui ver o vídeo e constatei que as imagens espelham claramente a realidade dos factos e que, a julgar pelas reacções, a realidade do aborto choca aqueles que o defendem.
Mais uma vez, Miguel Milhão, o homem da Prozis, despertou os censores de serviço e o ódio dos abortistas. Depois de, em 2024, durante o intervalo da Taça de Portugal de futebol masculino, ter feito passar um anúncio a celebrar o “dia da sua fecundação”, com uma mensagem anti-aborto, o fundador da Prozis volta a pagar anúncio que alerta para o genocídio de bebés.
A reacção imediata da associação pró-aborto, Escolha, foi fazer queixa à ERC. Na queixa, a associação que defende a “escolha” (de abortar) alega que «a mensagem do vídeo contém imagens que exageram o procedimento, incluindo dramatizações negativas da figura do Estado e de sangue nas mãos de profissionais de saúde».
Fui ver o vídeo e constactei que as imagens espelham claramente a realidade dos factos e que, a julgar pelas reacções, a realidade do aborto choca aqueles que o defendem. Nem imagino o que teria sido dito se o vídeo contivesse imagens de um aborto cirúrgico, um procedimento que consiste em arrancar os membros do bebé um a um, até à morte, e que depois exige que se faça um puzzle macabro com cada pedacinho, para atestar que todo o corpinho do bebé foi retirado da sepultura, perdão, do ventre materno.
E antes que comece a argumentar que o aborto já não é tão violento, porque o método mais usado é o medicamentoso, como se a forma como se mata alguém mudasse o acto em si e o tornasse aceitável, deixe-me dizer-lhe que nos Estados Unidos pós-Roe, já se descobriu que os medicamentos abortivos não são seguros e que prejudicaram milhares de mulheres e meninas – nalguns casos, fatalmente – que a taxa de complicações com pílulas abortivas é quatro vezes maior que a de um aborto cirúrgico no primeiro trimestre[1] e que há complicações graves que incluem hemorragia, infecção e gravidez ectópica não diagnosticada.[2]
Alerta feito, voltemos ao vídeo do momento.
Apesar dos movimentos abortistas quererem impor a lei da mordaça aos pró-vida, o debate sobre o aborto deve ser retomado, pois é um debate sobre a verdade. A verdade moral não é apenas uma escolha, como escolher um prato de carne ou um prato de peixe. A verdade moral é real e passível de ser conhecida. O debate é sobre a dignidade humana: sobre o valor que você e eu possuímos pelo que somos intrinsecamente e não por aquilo que fazemos ou pelo tamanho que temos. O debate nem sequer é complexo. Ou acreditamos que cada ser humano tem direito à vida ou não acreditamos.
Os cristãos pró-vida têm uma resposta: apesar de divergirem nos respectivos estágios de desenvolvimento, os seres humanos são iguais porque partilham uma natureza humana comum – fomos criados à imagem do nosso Criador – e, por isso, os seres humanos têm valor pelo simples facto de serem humanos.
Críticos seculares, pró-aborto, como David Boonin, têm uma perspectiva radicalmente diferente. Boonin, autor do livro Uma defesa do aborto, oferece-nos esta ilustração absolutamente desoladora:
Sobre a mesa do meu escritório, onde a maior parte deste livro foi escrita e revista, há diversas fotografias do meu filho, Eli. Numa delas, ele está a dançar alegremente sobre a areia ao longo do Golfo do México, com a brisa leve do oceano a bagunçar o seu cabelo fino. Noutra, ele está sentado na relva do quintal dos seus avós de forma um tanto desequilibrada, ainda a tentar dominar a habilidade se se sentar sozinho. Na terceira fotografia, ele tem apenas algumas semanas, e agarra-se firmemente aos braços que o seguram. Ainda está a usar o pequenino gorro que serviu para o manter aquecido assim que saiu do hospital. Através de todas as mudanças impressionantes que essas fotografias registam, ele inconfundivelmente permanece o mesmo rapazinho. Na gaveta superior da minha mesa, guardo outra fotografia do Eli. Esta foi tirada […] 24 semanas antes de ele nascer. A imagem da ecografia não é nítida, mas revela, de forma suficientemente clara, uma pequena cabeça levemente inclinada para trás, e um braço erguido e curvado, com a mão a apontar na direção do rosto e o dedão estendido em direção à boca. Não há nenhuma dúvida na minha mente de que esta imagem, também, mostra o mesmo rapazinho num estágio bem anterior do seu desenvolvimento físico. E não restam dúvidas de que a posição que eu defendo neste livro implica que seria moralmente permissível acabar com a vida dele naquele momento.[3]
Trágico! Como se sentirá aquele rapazinho quando souber que o seu pai o eliminaria sem qualquer remorso naquela fase do seu desenvolvimento?
Boonin defende que apesar de sermos idênticos ao embrião/feto que uma vez fomos, ou seja, que nós éramos os mesmos tanto naquela fase do nosso desenvolvimento como agora, isso não significa que, naquele momento, possuíssemos o mesmo direito à vida que hoje temos. Para ele, o ser humano não tem nada de especial, nada que o diferencie de um rato ou de uma barata, o que quer dizer que o seu direito à vida não existe ou é um mero acidente e que o direito à vida só passa a existir quando possuímos algumas características que os embriões/fetos ainda não possuem.
Então, o que é que nos torna iguais? Se os seres humanos só têm valor intrínseco e direito à vida, por causa de alguma característica que possuem em diferentes estágios do seu desenvolvimento, aqueles que têm essa característica mais desenvolvida têm mais valor e mais direito à vida do que os que têm menos dessa característica?
Como cristã, defendo que a visão pró-vida, baseada na Bíblia, explica a igualdade humana, os direitos humanos e as questões/obrigações morais muito melhor do que a visão progressista/secularista. Quando os defensores da vida afirmam que o aborto à la carte tira, injustamente, a vida a um ser humano indefeso, não estão a dizer que não gostam do aborto. Estão a afirmar que o aborto é objectivamente errado, independentemente de como uma pessoa se possa sentir acerca dele.
Quando os defensores do aborto argumentam: “Se não gosta do aborto, não aborte”, estão a mudar a observação de uma verdade objectiva para uma mera preferência do pró-vida, como se ele estivesse a falar do que gosta em vez daquilo que é verdadeiro. Essa é uma falsa questão, que urge desmascarar. Os defensores da vida não são contra o aborto porque acham que é desagradável; eles opõem-se ao feticídio (este é o verdadeiro nome a dar ao aborto) porque viola princípios morais racionais. Gosto da forma como J. Beckwith desmonta a falácia:
Imagine que eu dissesse: «Se não gosta da escravatura, não tenha um escravo.” Se eu dissesse isso, você imediatamente iria perceber que eu não captei verdadeiramente o porquê de as pessoas acreditarem que a escravatura é errada. Não é errada porque eu não gosto dela. É errada porque os escravos são seres humanos com valor intrínseco, e, por natureza, não podem ser propriedade de outro ser humano. Se eu gosto ou não da escravatura não é relevante para a questão de ela ser ou não errada. Imagine outro exemplo: «Se não gosta de violência doméstica, não bata na sua mulher.» Novamente, o erro da violência doméstica não depende das minhas preferências ou dos meus gostos. Na realidade, se alguém afirmasse gostar de violência doméstica, nós diríamos que essa pessoa é má ou doente. Não iríamos ajustar a nossa visão sobre a questão e dizer: «Bem, eu acho que a violência doméstica é certa para si, mas não para mim.[4]
O cristão pró-vida não está a declarar as suas preferências. Ele está a dizer o que é certo ou errado independentemente dos seus gostos ou desgostos.
Afirmar que “um embrião/feto é um sujeito humano com direitos” não é mais religioso do que afirmar que não é. As duas afirmações envolvem compromissos filosóficos prévios. O nosso trabalho é mostrar qual delas explica melhor o valor da vida, a dignidade e a igualdade humanas.
Voltando ao vídeo do Miguel Milhão, a figura do Estado e o papel que desempenha na questão do aborto não é uma dramatização negativa, mas sim um choque de realidade. Ou o Estado de direito reconhece que os nascituros são seres humanos valiosos e protege-os, ou não os reconhece como tal e emite leis para legalizar a matança dos inocentes às mãos de profissionais de saúde que, sim, têm sangue nas mãos.
O valor da vida e a sua inviolabilidade não podem ficar reféns de maiorias parlamentares nem de referendos. Cada morte por aborto é uma lamentável tragédia.
Se a lei do aborto for revogada, e eu tenho esperança de que venha a ser, as mulheres não serão obrigadas a fazer um aborto ilegal; elas escolherão abortar. Como pró-vida, lamento a morte de qualquer mulher (e a do bebé abortado) por causa de um aborto, mas rejeito a premissa de que as mulheres precisem de fazer abortos ilegais. Imagine que a lei é revogada em Portugal e que os nascituros passam a ser protegidos. O que é que nos leva a acreditar que uma mulher que deseja fazer um aborto não pode refrear-se e optar por não o fazer? Será que temos uma visão tão miserável acerca das mulheres? Será que não as estamos a rebaixar?
Termino com as palavras de Gregory Koukl:
Enquanto o aborto for ilegal, uma mulher é tão forçada a abortar numa viela quanto um rapaz é obrigado a assaltar bancos porque não recebe benefícios do Estado. Ambos têm outras opções.
[1] Instituto Charlotte Lozier, “Aborto químico: FDA ignora ciência e dados ‘inconvenientes’ que confirmam ameaça à saúde pública”, 16 de dezembro de 2021, https://lozierinstitute.org/chemical-abortion-fda-ignores-inconvenient-science-and-data-confirming-public-health-threat/ (acessado em 25 de janeiro de 2025).
[2] Associação Americana de Obstetras e Ginecologistas Pró-Vida, “Perigos do relaxamento das restrições à mifepristona”, Parecer do Comitê Número 9, atualizado em julho de 2022, https://aaplog.org/wp-content/uploads/2022/07/CO-9-Mifepristone-restrictions-update-Jul-22.pdf (acessado em 25 de janeiro de 2025).
[3] BOONIN, David. A Defense of Abortion, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. Xiii-xiv.
[4] OLSON, Carl E. The Case Against Abortion: Na Interview with Dr. Francis Beckwith, Author of Defending Life.Ignatius Insight, janeiro, 2008.