A verdade pura e simples é que a ideologia do género existe e não se adapta à realidade do sexo – a estratégia reprodutiva dos mamíferos, incluindo os seres humanos.
Publicado no Observador

Nas raríssimas vezes em que o termo «ideologia de género» aparece no debate público, os seus defensores/promotores declaram com convicção: «não existe ideologia de género». Curiosamente, ou não, a maior parte dos jornalistas tende a alinhar pelo mesmo diapasão.
Muitas vezes, no fim de uma palestra, na apresentação de um livro e nas publicações que partilho nas redes sociais, as pessoas perguntam: «O que é que o termo ‘ideologia de género’ significa»?», «Pode definir o que é «ideologia de género»?», «Qual é a sua origem?»
Apesar de virem de pessoas diferentes, as perguntas são parecidas e reflectem a ignorância das pessoas sobre o tema. E, se até consigo entender que os políticos que impõem e fazem avançar a agenda ideológica do género neguem que se trata de uma ideologia, não entendo porque é que os jornalistas se limitam a papaguear os que esses políticos e activistas dizem e não demonstrem qualquer interesse em ouvir vozes discordantes nem em explicar ou analisar como é que essa ideologia invadiu a nossa cultura tão rapidamente. Às vezes, penso que há ordens emanadas da maioria política no poder para que nenhum canal de televisão se atreva a dar voz à verdade dos factos…
A leviandade e o facilitismo com que políticos, jornalistas e activistas rotulam o termo «ideologia de género» como «uma invenção da extrema-direita» revela que fazem parte de uma campanha mediática para desacreditar quem denuncia os malefícios da ideologia e outros relacionados.
Por exemplo, em 2023, o novo guia de estilo da AP [Associated Press] aconselhava: «Não usar o termo transgenerismo, que enquadra a identidade transgénero como uma ideologia».
Os wikipedistas também fazem a sua parte (des)informando os seus leitores de que o «movimento anti-género é um movimento internacional que se opõe ao que designa por ‘ideologia de género’, ‘teoria de género’ ou ‘transgenerismo’. […] conceitos que abrangem uma variedade de questões e não têm uma definição coerente».[1]
O gigante da enciclopédia on-line cita alguns académicos europeus – pró-ideologia de género, pois claro – que afirmam que o termo é um «significante vazio» e que os idiotas que usam esta palavra, supostamente sem conteúdo, «incluem os direitistas e a extrema-direita, os populistas de direita, os conservadores e os fundamentalistas cristãos».
A acusação da Wikipédia, ao contrário do que a AP sugere, não alega que o termo ideologia de género seja injusto ou impreciso, mas tenta convencer os seus leitores de que não se refere a nada.
No entanto, é evidente que a ideologia de género existe e que o termo pode ser definido. Afinal, se milhares de pessoas usam um termo para se referirem ao mesmo conjunto de factos que explodiram no Ocidente isso deve significar algo para elas e, certamente, tem um referente. Isto é verdade, independentemente da origem do termo, mesmo que, à primeira vista, seja difícil para uma pessoa defini-lo rigorosamente.
Qualquer pessoa que acompanhe a política nos últimos anos tem alguma ideia do que significa o termo «ideologia de género» [IG]e a que é que nos referimos quando o mencionamos:
- O Bolacha de Gengibre do Género[2], presente em todos os guias, manuais, sites e conteúdos, sobre sexualidade, leccionados nas nossas escolas, é uma invenção da IG;
- Brochuras, como por exemplo “Sermos nós próprios”[3], criadas por associações lgbt+, introduzidas no ensino escolar e impostas aos alunos através do site de Cidadania e Desenvolvimento[4];
- As novas letras, números e símbolos acrescentados à sigla GLS [Gays, lésbicas e simpatizantes], cada um com uma cor da bandeira colorida, são inspirados na IG;
- A IG, adoptada e disseminada pelo Ministério da Educação, convence as direcções das escolas a permitir que os rapazes que se «identificam como» raparigas participem nas competições desportivas femininas e utilizem as casas de banho das raparigas;
- A IG condiciona os meios de comunicação social, que, em obediência à voz do dono, estigmatizam e pressionam os cidadãos no sentido de aceitarem e professarem que homens, que competem em concursos de miss, competições desportivas e até no prémio «mulher do ano», são mulheres;
- A ideologia de género é a fonte da crença de que as crianças podem nascer no corpo errado;
- A IG leva os mais desavisados e crédulos a pensar que, se uma jovem sente angústia em relação ao seu corpo, os médicos não devem ajudá-la a aceitar e amar o seu corpo, mas sim a mutilá-lo e a mudar o que a rodeia – nome, casa de banho, pronomes – para se adaptar à sua «identidade de género».
- A IG alimenta a disseminação de conceitos como «identidade de género» – incluindo as muitas novas supostas identidades, como não-binário e pansexual – e a frase reveladora «sexo atribuído à nascença»;
- Inspira e obriga a proclamações mentirosas como «as mulheres trans são mulheres»;
- “Obriga” o Parlamento, através da pressão dos colectivos lgbt+ e dos partidos de esquerda e da direita-que-a-esquerda-gosta, a hastear a bandeira colorida na fachada da Assembleia da República e de algumas Câmaras Municipais, para celebrar o Mês do Orgulho Gay;
- Leva mulheres, como a juíza Ketanji Brown Jackson, a primeira mulher negra eleita para o Supremo Tribunal do EUA, a responder «Eu não posso definir o que é uma mulher… Não sou bióloga» quando os jornalistas lhe perguntaram «O que é uma mulher?»[5]
A omnipresença da ideologia de género é a razão pela qual o título do Babylon Bee, «Bigoted Gender Surgeon Still Only Offering ‘Male’ and ‘Female’»[6] [Babylon Bee, «Cirurgião intolerante em matéria de género continua a oferecer apenas ‘masculino’ e ‘feminino’»], é engraçado, pois subentende a que se refere a ideologia de género.
É ridículo fingir que estas ideias não têm uma fonte que possamos identificar.
No entanto, reconheço que definir a ideologia é muito mais difícil do que apontar os seus efeitos e que é por isso que os críticos da ideologia de género não conseguem, muitas vezes, definir a ideologia quando são desafiados a fazê-lo. Podem dizer, por exemplo, que a ideologia afirma que as pessoas podem mudar ou escolher o seu sexo ou género à vontade, mas não é isso que os seus adeptos afirmam.
Definir bem um termo, passa por tornar explícito aquilo que os seus utilizadores já referem e compreendem e por revelar a coisa em si. Neste caso, deve captar o ponto de vista dos defensores da IG que tudo fazem para que ela permaneça envolta num denso nevoeiro e não seja nomeada e examinada à luz da razão e da natureza.
Apontar os seus defeitos é uma brincadeira de crianças, mas a ideologia em si está envolta em obscuridade e equívoco. Os seus proponentes jogam constantemente um jogo, redefinindo palavras familiares e criando novas variações dessas palavras que só fazem sentido dentro do seu próprio paradigma. Por isso, não se pode realmente definir a ideologia de género sem invocar alguns dos termos que ela já inseriu na nossa língua – termos que também precisam de ser definidos.
No entanto, isso pode ser feito – desde que nos concentremos na sua encarnação actual.
Em Junho de 2023, o médico «crítico em relação à IG», Jeremy Shaw, pediu ao Twitterverse uma definição desse tipo. Jay W. Richards, respondeu:
A ideologia de género é a teoria de que o binário sexual[7] não capta a complexidade da espécie humana e de que os indivíduos humanos são adequadamente descritos em termos de um «sentido interno de género» chamado «identidade de género» que pode ser incongruente com o seu «sexo atribuído à nascença».
Ok! A ideologia de género é mais do que isso. Mas é, pelo menos, isso.
Mais tarde, Jay disse, que se tivesse pensado melhor, teria substituído o termo «teoria» por «ponto de vista», que é menos elevado, e que, como todas as definições, aquela continha termos que não eram devidamente definidos e termos como «identidade de género» e «sexo atribuído à nascença», que são artefactos da ideologia.
De acordo com a definição do dicionário do Google[8], «identidade de género» é «o sentido inato de género de uma pessoa». O termo, diz-nos o Dr. Google, é «usado principalmente em contextos em que é contrastado com o sexo registado à nascença». Portanto, é suposto entendermos cada um destes termos à luz do outro.
Esta definição circular de identidade de género é a norma. A palavra «género» aparece tanto na definição como no termo que está a ser definido – tanto no explanans como no explanandum[9].
Apesar desta deficiência, podemos ter uma noção melhor do que é a ideologia de género se nos concentrarmos na utilização que faz de «género» e «sexo». Para a maior parte das pessoas, «género» pode parecer um sinónimo fofinho de «sexo» – como tem sido nos países de língua anglo-saxã durante séculos (https://www.etymonline.com/word/gender).
Por exemplo, em Junho de 2023, o então candidato presidencial Vivek Ramaswamy tweetou[10] dez «verdades», entre as quais: «2. Existem dois géneros», mas ele devia ter tweetado «Existem APENAS dois géneros» – que é claramente o que ele quis dizer.
Porque é que isto é importante?
Porque os ideólogos do género tendem a usar «género» como sinónimo de «identidade de género» – como se percebe no eufemismo «cuidados de afirmação do género»[11] usado na medicina. Esses «cuidados», na verdade, afirmam a presumível identidade de género do paciente, mesmo que isso signifique amputar e retalhar os seus órgãos sexuais primários e secundários. Neste léxico, para qualquer pessoa que não professe a doutrina lgbt+, afirmar «Há dois géneros» poderia significar «Há duas identidades de género». Os ideólogos do género, por seu lado, não admitem qualquer princípio limitador do número de identidades de género. Por isso, os seus críticos deveriam dizer: «Só há dois sexos».
No entanto, em vez de negarem completamente a realidade do sexo, os ideólogos do género utilizam o substituto, agora omnipresente, «sexo atribuído [ou registado] à nascença». Assim, evitam usar a palavra «sexo» – a verdadeira diferença biológica entre seres humanos do sexo masculino e feminino – e, em vez disso, tratam-no como uma mera construção social. Não é de admirar que as pessoas normais fiquem confusas.
Por mais bizarro que tudo isto possa ser, para aqueles que ainda dominam os seus instintos/sentidos, este léxico de género já está tão avançado que, se pesquisar no Google “O que é o binário de sexo?”, será redireccionado, ou melhor, desviado[12], para páginas que tentam desmistificar o «binário de género». O Google está a fazer a sua parte para promover a causa da ideologia de género – embora, de acordo com sondagens recentes, cada vez menos pessoas pareçam acreditar nisso[13].
Porque é que os ideólogos de género jogam estes jogos verbais de fachada? O que os leva a fingir que o seu ponto de vista não pode ser definido?
Creio que fazem isso porque querem que a ideologia seja vista como uma simples libertação da ciência e da doce razão, em vez de um dogma tão estranho que quase ninguém o aceitaria se fosse explicado com precisão e sem a ameaça do opróbrio social.
A verdade pura e simples é que a ideologia do género existe e não se adapta à realidade do sexo – a estratégia reprodutiva dos mamíferos, incluindo os seres humanos. Na perspectiva dos ideólogos de géneros e dos seus fiéis, o sexo não é uma verdade objectiva sobre homens e mulheres. Para os súbditos da nova religião WOKE, não somos homens ou mulheres em virtude da nossa estrutura corporal ou do facto dos nossos corpos estarem orientados para a produção de esperma ou de óvulos, mas sim seres psicológicos com sentidos internos de género – uma espécie de almas de género desencarnadas cujas «identidades de género» são independentes e podem ser incongruentes com os corpos que Deus nos deu e que a medicina associou ao «masculino» e ao «feminino». Ou seja, para quem professa a ideologia de género as categorias de «sexo» são meras convenções sociais e não factos.
Por razões óbvias, os acólitos do género raramente dizem as coisas de forma tão clara e directa.
Não nos deixemos enganar. Quando vemos e ouvimos termos confusos a serem utilizados para negar e explicar o que sabemos ser a verdade, podemos ter certeza de que não estamos a lidar com ciência ou filosofia a sério, mas sim com uma mistura incoerente de conceitos a que podemos chamar, com razão, ideologia de género.
Termino com as palavras de E. Michael Jones, que se encontram na contra-capa do seu livro Libido Dominandi:
A revolução sexual funcionou, desde o germe, como um mecanismo de controle social. Assim que conseguiram o que pretendiam, aqueles que desejavam libertar o homem da ordem moral tiveram de impor novas formas de controle social às pessoas, porque a libido, quando libertada, conduz inevitavelmente à anarquia.
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Anti-gender_movement
[2] https://rea.pt/imgs/uploads/brochura_2018.pdf
[3] https://rea.pt/imgs/uploads/doc-brochura-snp.pdf
[4] https://cidadania.dge.mec.pt/recursos/sexualidade
[5] https://www.nationalreview.com/news/judge-jackson-refuses-to-define-woman-during-confirmation-hearing-im-not-a-biologist/
[6] https://www.instagram.com/p/CtHxRJBSa78/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D
[7] https://www.theparadoxinstitute.com/watch/why-sex-is-binary
[8] https://www.britannica.com/topic/gender-identity
[9] https://www.lancaster.ac.uk/fas/psych/glossary/explanans_and_explanandum/
[10] https://x.com/VivekGRamaswamy/status/1666486821906178065
[11] https://www.aamc.org/news/what-gender-affirming-care-your-questions-answered
[12] https://www.google.com/search?q=what+is+the+sex+binary&rlz=1C5GCEM_enUS1060US1060&oq=what+is+the+sex+binary&aqs=chrome..69i57.3775j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[13] https://www.prri.org/research/the-politics-of-gender-pronouns-and-public-education/