Para darmos início a uma breve reflexão sobre a Educação em Portugal e aos currículos adotados, no âmbito de Género e Cidadania, há que introduzir um fio condutor ao multilateralismo de Portugal que se vê empenhado a dar o seu contributo ativo no seu compromisso com Organizações Mundiais. Fiel à Carta das Nações Unidas e empenho na execução de agendas internacionais, Portugal assumiu a adoção de políticas para que se possam cumprir os objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030.
De entre os 17 ODS, Portugal estabeleceu como prioridades nacionais 6 ODS estratégicos, os quais contempla, o objetivo 4 (Educação de Qualidade) e o objetivo 5 (Igualdade de Género), a par com a Recomendação CM/REC (2010)5 do Comité de Ministros aos Estados-Membros do Conselho da Europa sobre medidas para o combate à discriminação em razão da orientação sexual ou da identidade de género e os Objetivos Estratégicos da Plataforma de Ação de Pequim (1995) relativos à educação.
“Orientação sexual é caracterizada como um padrão duradouro de atração romântica ou sexual, podendo ser direcionada a pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo, ou a ambos os sexos.”
Identidade de Género refere-se à “experiência interna e individual sentida por cada pessoa relativamente ao género com que se identifica, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença. Pode envolver, se livremente escolhido, a modificação da aparência ou do corpo por meios cirúrgicos, farmacológicos ou de outra natureza e outras expressões de género, incluindo o comportamento, o vestuário, a expressão verbal e corporal.” Fonte: CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
Perante este cenário foi criado o Projeto “Guiões de Educação Género e Cidadania: uma estratégia para o mainstreaming de género na educação o sistema educativo” com 3 fases: a 1ª fase decorreu entre 2008 e 2012 e diz respeito à criação de guiões escolares; a 2ª fase decorreu entre 2013 e 2017 com a formação de docentes e por último, a 3ª fase com início em 2018 que culminou com a integração nas escolas do conceito sobre a autodeterminação da identidade de género, expressão de género e proteção das características sexuais de cada pessoa à luz da Lei Nº 38/2018 de 7 de agosto.
Surgem, assim, os: Guião de educação género e cidadania: pré-escolar (edição 2015); Guião de educação género e cidadania: 1º ciclo do ensino básico (1ª edição 2011, 2ª edição 2015); Guião de Educação Género e Cidadania: 2º ciclo do ensino básico (edição 2012); Guião de educação género e cidadania: 3º ciclo do ensino básico (2.ª edição, novembro 2015, 1.ª edição 2010); Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário (1.ª edição, 2017).
Neste artigo vamo-nos debruçar sobre o Guião do pré-escolar e o Guião do 1º ciclo do ensino básico, uma vez que ambos têm a mesma estrutura, porém, dar-se-á maior enfoque ao guião do pré-escolar, pois é neste que começa a desconstrução do que é ser menino/ homem e do que é ser menina/mulher, o papel da mãe e do pai e, por conseguinte, a estrutura familiar.
Quer um e quer outro guião tratam de questões de género no âmbito da educação para a cidadania e apresentam uma organização do conteúdo dividida em duas partes: na primeira parte consta o enquadramento teórico sobre género e cidadania, género e currículo na educação e educação para a cidadania e igualdade de género; a segunda parte aborda o género, cidadania e intervenção educativa – sugestões práticas. O guião do 1º ciclo reforça os conteúdos do guião do pré-escolar.
Começa-se por distinguir o que é sexo e o que é género; sexo pertence à esfera biológica, feminino ou masculino e género é uma construção social, cultural e religiosa que associa determinados estereótipos ao sexo biológico.
Estereótipos são conceitos, ideias, papéis, atitudes e capacidades que são atribuídos a meninos/homens e a meninas/mulheres com cariz preconceituoso e sem qualquer fundamento científico.
Para se desconstruir estes estereótipos que, segundo as autoras (baseadas em muitas referências bibliográficas, maioritariamente feministas), levam a relações sociais de dominação e de subordinação, o que leva a desigualdades de poder, é primordial dissociar o sexo biológico do género. Assim, o género é um conjunto de componentes que incluem, a identidade de género, a orientação sexual, os papéis de género, as características da personalidade, as competências e os interesses pessoais.
O importante é que cada pessoa não se deixe condicionar pelo sexo com que nasceu, nem pelas expetativas sociais.
Identidade de género refere-se ao género com o que cada um se identifica, podendo corresponder ou não ao sexo biológico, é uma questão interna, sentida individualmente em relação aos papéis atribuídos de género atribuídos socialmente enquanto menino/homem, menina/mulher.
De forma resumida, o guião refere vários estudos que afirmam que quem nasce do sexo masculino pode não ser homem e quem nasce do sexo feminino pode não ser mulher.
Educar para a cidadania é dizer não a estereótipos, é dizer não ao preconceito. Os currículos promovem a educação para a cidadania, integrando a aceitação da diversidade como meio de fomentar uma maior igualdade de oportunidades e participação.
Como se desconstrói os papéis de homem e de mulher:
Começa-se pela organização do ambiente escolar, nomeadamente, a organização das salas e a forma como a decoração e brinquedos existentes induzem a comportamentos preconcebidos, no que diz respeito, a questões de género e aos papéis atribuídos a meninos e meninas.
Reforça-se a importância da abordagem a estes temas na educação desde o pré-escolar, uma vez que é nos primeiros anos de vida, dos zero aos sete anos, que os cérebros das crianças funcionam como “esponja” e é através da aplicação de técnicas de comunicação, como o brainstorming, jogos de papéis, dramatização, estudo de casos, testemunhos, situações do dia a dia, organização das salas que permite anular as diferenças entre menino/homem e menina/mulher. Um dos exemplos que consta no guião do pré-escolar, na pág. 67, faz-se alusão a um placard da Páscoa onde a galinha se distinguia do galo, não pela crista, mas pelo uso de avental.
Na página 74 pede-se aos alunos que pensem em 3 maus comportamentos que atribuem a meninas e meninos e até que ponto estas atitudes são indutoras de práticas educativas excessivamente diferenciadoras.
Na página 77 invoca-se o desenvolvimento de estratégias de clarificação de valores e de mudança de atitudes, partindo-se do princípio que as pessoas podem ser induzidas a mudar a sua atitude a respeito de uma determinada realidade.
Na página 82, 83 e 84 é aplicada o método da filosofia para crianças (método Lipman) onde trabalha-se o género e as profissões, o género e as tarefas domésticas, o género e as brincadeiras. É importante tornar este tipo de sessões habituais, numa lógica de continuidade e sequencialidade, nomeadamente para que o envolvimento da criança nas sessões/discussões vá aumentando em função do (re)conhecimento da dinâmica das mesmas. A maior parte dos contextos fornece pretextos para avaliar as representações das crianças sobre os papéis de género: enredos, caracterização e descrições das relações entre as personagens de livros /filmes infantis ou programas televisivos, desenhos e narrativas das próprias crianças, publicidade, caracterização dos brinquedos, etc. Até que ponto estes poderiam ser pretexto para discutir com as crianças a forma como avaliam o que é ser “menino” e “menina” e os comportamentos de género.
Na página 94 e 95 sobre o envolvimento das famílias e comunidades é referido “…na educação, sobretudo no trabalho com crianças pequenas, há sempre uma enorme “carga ideológica”. Clarificá-la e explicitá-la, por parte de educadoras e educadores, não é fácil, mas é fundamental para estabelecer uma relação de confiança, mesmo quando as ideias não são as mesmas que as veiculadas pelas famílias.” Ou seja, os valores e educação dos seus filhos por parte da família é considerada “carga ideológica”, devendo estes valores e educação ser (re)formulados. Também diz “Paralelamente, há que considerar a cada vez maior diversidade dos contextos sociofamiliares em que as crianças vivem. Durante muitos anos, o nosso imaginário foi povoado de ideias sobre as famílias ditas “tradicionais”, que já não existem. “Há crianças que vivem só com o pai; crianças que vivem só com a mãe; crianças que para além do pai ou da mãe biológico/a, têm um “novo” pai ou uma nova “mãe” derivada de outros casamentos; crianças que vivem em tutelas partilhadas com o pai e com a mãe; crianças que vivem com dois pais ou duas mães (homossexuais ou bissexuais); crianças que vivem com os avós; crianças que vivem em instituições; etc., esta diversidade impõe algumas reflexões: será que tem sentido celebrar o Dia do Pai ou o Dia da Mãe como tradicionalmente se fazia?
Após a desmitificação de que menino/homem e menina/mulher são diferentes nos seus papéis, na página 105, quer-se que as crianças compreendam a diversidade intrassexual, isto é, que compreendam o facto de que o sexo masculino (acontecendo o mesmo com o sexo feminino…) expressa a masculinidade com estilos diferentes, mais e menos estereotipados e mais e menos positivos do ponto de vista relacional; a tal ponto que podem ser mais pronunciadas as diferenças entre dois homens do que entre um homem e uma mulher; e mais marcadas as diferenças entre duas mulheres do que entre uma mulher e um homem. Assim, uma mulher e um homem podem ser mais parecidos entre si do que duas mulheres entre elas e vice-versa. Quer também alargar o conhecimento das crianças sobre os animais, nomeadamente dando-lhes a conhecer a diversidade de estratégias de reprodução existente entre os seres vivos. As crianças pesquisam sobre a vida de animais com formas de expressão da sexualidade diversa da humana, tal como o caracol; e formas não estereotipadas de expressar o género, tal como a agressiva rainha das abelhas ou o cuidadoso pai castor.
Dentro dos projetos que envolvem as diferentes áreas curriculares, é introduzido o estudo de personalidades femininas, “num universo essencialmente masculino, a introdução de histórias de vida de mulheres que tiveram ou têm um papel importante na sociedade é uma referência fundamental que alarga o tipo de modelos que habitualmente são apresentados às crianças” (página 109).
Após toda esta descrição, aparentemente longa, mas resumida na sua essência, as crianças no fim do seu percurso no pré-escolar, e como dizem as autoras do Guião, o trabalho deverá prolongar-se no 1º ciclo, poderão com a idade de 6 anos, independentemente de terem nascido do sexo masculino ou do sexo feminino, optarem pela sua identidade de género, ou seja, os meninos podem ser meninas e as meninas podem ser meninos.
Fica a questão: Se o sexo biológico não determina nada e os estereótipos associados ao homem e à mulher são construções socias, culturais e religiosos, que conduzem a desigualdades, como é que os mesmos estereótipos são usados para que um menino se sinta menina e uma menina se sinta menino?
Lígia Albuquerque e Castro