Ensino (Especial) Doméstico – Parte 2

A programação da semana 

Um dos princípios pelos quais oriento o trabalho que faço com o meu filho é a Programação da semana. A Programação é essencial para qualquer faixa etária e pode ter mais ou menos detalhes dependendo do grau de autismo e da situação em concreto. Esta programação é muito importante porque permite ter uma visão global (por antecipação) daquilo que ele vai fazer durante a semana, e as pessoas com autismo necessitam muito desta previsibilidade. Mas, porque também é importante trabalhar o facto de haver situações imprevisíveis na vida, por vezes introduzo ou retiro intencionalmente uma atividade a meio da semana para que o Filipe se habitue a situações imprevistas na rotina. 

Para programar a semana, uso um painel de cortiça afixado em local visível com as principais atividades da semana: académicas, saídas, artes e lazer.

Faço esta programação no início de cada semana (ao domingo à noite). O período vai de segunda-feira até domingo inclusive. Acima do painel coloco também a informação do ano, mês e do período da semana a que respeitam as atividades. No caso do Filipe, embora mantenha alguns recursos visuais que utilizo há muitos anos, atualmente já não preciso de usar muitas imagens no painel porque o Filipe já identifica a atividade apenas com o texto, mas usei imagens e texto em painel semelhante durante muitos anos. Desde que o Filipe começou a associar as rotinas e as atividades às horas do dia, eu introduzi outra ferramenta de organização, mas desta vez diária: a agenda. É o Filipe quem a preenche todos os dias e é onde assinala o que já fez.

O painel é dividido nas três grandes partes do dia — Manhã/Tarde/Noite — e sete dias da semana. Nesta fase não precisa de ter no painel as subdivisões que lhe indicavam as pausas a meio da manhã, do lanche, do almoço ou do fim da tarde. O Filipe reconhece bem as horas e associa-as às diferentes partes do dia. No entanto, ele gosta de escrever na agenda as rotinas daquilo que se repete todos os dias (acordar; tomar banho; vestir; tomar o pequeno-almoço; almoçar; lanchar; jantar). 

Tendo em conta que o conceito de tempo é muito importante para o dia a dia, para a noção de presente, passado e futuro e para a compreensão dos diferentes elementos do tempo cronológico; e ainda porque esses conceitos são difíceis de apreender, mantenho em uso outro painel com os dias do mês, os meses do ano, os dias da semana, as estações do ano, o tempo atmosférico e um relógio de treino, com o objetivo de relembrar regularmente estes conceitos relacionados, principalmente, com o tempo cronológico.

Sempre que é necessário, faço ajustes na programação da semana de modo a corresponder o melhor possível às necessidades do Filipe. Normalmente faço esses ajustes no início de um novo período semanal. Por exemplo, se o Filipe começar a usar o mesmo CD apenas para autoestimulação, na semana seguinte substituo este CD por outro do seu agrado. Outra estratégia que uso na programação é intercalar o uso dos equipamentos eletrónicos (incluindo a televisão e DVD) com outros tempos para fazer “puzzles” não digitais, bola de Pilates, desenho livre, música, fotografias, etc, para evitar a exposição excessiva às imagens e aos sons daqueles aparelhos. 

A programação da semana (e os seus ajustes) tem sido muito importante no caso do Filipe. O Filipe passou por um período de maior tensão emocional e a planificação semanal com muita perseverança e paciência, fez a diferença entre o Filipe passar ou não a tomar mais um medicamento por causa da ansiedade excessiva que já nos preocupava. Também durante a pandemia da Covid-19 que estamos a atravessar, temos constatado como esta programação nos tem ajudado (e muito) a continuar o nosso trabalho sem grandes oscilações no comportamento do Filipe mesmo face à alteração das rotinas que toda a família teve de fazer.

As atividades da semana são definidas de acordo com o PEI (Programa Educativo Individual) e com o PIT (Plano Individual de Transição). 

A seguir partilho algumas experiências e estratégias que tenho utilizado e que têm funcionado para o caso do Filipe e que espero sejam úteis para si também.

Atividades académicas

Nestas atividades, procuro usar sempre imagens, objetos ou vídeos daquilo que ele mais gosta para ilustrar e concretizar os conceitos porque isto capta a atenção dele e facilita a aprendizagem. Relativamente ao uso das imagens em geral, opto por aquelas que sejam graficamente simples, sem elementos que o distraiam como acontece com as letras ou os números com muitos efeitos gráficos, ou ainda com carinhas, muito comuns em livros escolares, e que considero desaconselhados para os alunos com autismo. 

Também gostaria de partilhar convosco algo que aprendi na formação que tenho feito em autismo e que tem a ver com o uso dos cinco sentidos. Sempre que é possível, levo o Filipe a usar os cinco sentidos enquanto ensino algum tema. Por exemplo, se ensinar sobre alimentação — legumes ou frutos — as ações de mostrar, mexer com as mãos, cortar, cheirar ou saborear são importantes para que seja usado o maior número de sentidos possível.

Se for sobre meios de transporte, a mesma coisa: mostrar a imagem do carro, ir à garagem ou à rua e, quando estiver no carro, falar sobre o barulho do motor, a sensação de movimento dentro do carro, o cheiro do espaço interior, falar sobre os outros carros que vê na rua, etc. 

A estratégia de intercalar temas e exercícios mais complexos com outros mais simples, assim como intercalar assuntos dos seus interesses particulares com outros não tão do seu agrado, mas úteis para ele, é outra estratégia que funciona bem com o Filipe. 

Habilidades sociais e autonomia

Relativamente à interação para ensinar habilidades sociais e autonomia, aproveito as oportunidades da rotina diária e preparo algum material. Dependendo do objetivo a alcançar, uso atividades em que o Filipe necessite de outrem para realizar a tarefa no todo ou em parte ou para obter alguma coisa fora do seu alcance ou do seu domínio. Pode ser com “legos”, “puzzles” (tomada de vez), com receitas de culinária (pedir para ir buscar ingredientes ou utensílios, lavá-lo a pedir ajuda também), telefonemas, momentos das refeições, etc. Com estas atividades, para além da interação, também é possível trabalhar matemática, segurança, estudo do meio/ciências, os cinco sentidos em ação e atividades experimentais. 

O tempo de duração de cada uma das atividades depende do quanto o Filipe esteja envolvido, mas não precisa de ser muito longo. Entre 15 e 30 minutos de cada vez, se ele estiver envolvido na atividade, para mim já é muito bom (progressivamente este tempo pode ser mais longo). O importante é que tudo seja feito com jogos, objetos ou alimentos preferidos e que o ambiente nestas atividades seja tranquilo e agradável. Recordo-me de algumas vezes em que eu ficava muito ansiosa por uma boa prestação do Filipe e por vê-lo a fazer “muitas coisas”. Mas isto em vez de ajudar só prejudicava a interação. Aprendi com o tempo que o meu estado de espírito e o meu prazer em estar ali com ele, era mais importante para o Filipe. Também pude perceber que ele era (e é) muito sensível ao estado emocional das outras pessoas, nomeadamente familiares. 

Relativamente às comorbilidades (da ansiedade e dos medos), também procuro ajudá-lo a ultrapassar estas dificuldades nestas atividades de interação programada. Por exemplo, todos os dias, após o pequeno-almoço, reservamos um tempo (cerca de 20 minutos) para falarmos daquilo que vamos fazer durante o dia e nesse tempo, muitas vezes o Filipe fala daquilo que lhe causa ansiedade ou medo. Nestes momentos de conversa é frequente ele recorrer ao desenho e a frases. Fiquei a saber de alguns medos dele enquanto ele fazia os seus desenhos neste tempo de interação. No final da tarde também passa um tempo com o pai para falar das coisas que gosta e partilha as suas ansiedades e os seus medos acerca do que o rodeia, apoiando-se também nos seus desenhos e nas frases que escreve.

As fotografias também têm sido uma boa e importante experiência de interação. O Filipe começou a prestar muita atenção às fotografias que havia em casa e desde então fazemos muitas atividades (tanto lúdicas como académicas) com base nas fotografias de família.

Relativamente à prática de exercício físico, durante o ano letivo frequenta o desporto escolar Golfe adaptado. Também faz exercício físico em aparelhos e caminhadas ao ar livre.

Saídas à comunidade

Nas saídas à comunidade, vamos ao Pão Quente, ao Talho, ao Supermercado, à Frutaria, ao Centro Comercial, fazemos caminhadas na rua e viagens de autocarro, observamos e nomeamos o que há no meio ambiente e aproveitamos para fazer algum exercício físico e passear um pouco ao ar livre. 

Como o Filipe gosta muito de pão, aproveito, por exemplo, a saída para ensinar a fazer o pedido do pão na loja e a pagar.  Antes de começar a trabalhar estas competências, levei o Filipe várias vezes a lojas e observei como ele se comportava na rua e nas lojas para ver se ele era capaz de esperar dentro da loja e se compreendia o que estava envolvido nestas atividades — precisamos de pão, temos de sair para ir aos locais onde se vende, temos de ter cuidado a andar nas ruas, temos de pedir o pão no balcão e temos de pagar com dinheiro. Isto envolve vários passos. O que para nós já é um gesto automático, no caso dele tinha de ser ensinado tudo o que ele não conseguisse executar autonomamente apenas por imitação. 

Atividades de lazer

Aqui uso todos os temas do agrado do Filipe: a música, livros diversos, caminhadas, legos, “puzzles”, filmes, jogos de computador (didáticos ou outros), tocar teclado, desenho livre,… evitando a permanência excessiva na mesma atividade; passeios, visitas a familiares e outras pessoas do nosso convívio, brincadeiras e tempos de descanso.

Intercalo as atividades de lazer com equipamentos eletrónicos – “tablet”, computador, telemóvel, televisão, DVDs – com “puzzles”, legos, livros, fotografias ou outra atividade que ele goste, como caminhar na rua, escrever e desenhar nos cadernos dele ou ouvir música. Se eu não intercalar, no final da tarde o Filipe está muito mais tenso e disperso e não descansa tão bem à noite.

Gostaria de partilhar também algo sobre os legos. O Filipe usa legos há muitos anos. Começou com blocos grandes e agora consegue construir sozinho apenas com o caderno das instruções. Certo dia, por sugestão da sua professora de desenho, dei ao Filipe uma caixa com muitas peças de legos soltos e disse-lhe para construirmos uma casa. Inicialmente ele ficou a olhar para o monte de legos mas, com uma pequena ajuda para iniciar a construção, ele começou a construir uma casa amarela. A partir daí, tem sido a caixa de legos que ele mais usa para construir as coisas que ele vê nas ruas e também frases usando apenas as iniciais…! Isto surpreendeu-nos porque pudemos constatar algum nível de abstração muito importante no desenvolvimento.

Há algum tempo encontrei um artigo (https://www.autismparentingmagazine.com/lego-therapy-autism/), que fala precisamente sobre os benefícios do uso dos legos como uma atividade terapêutica para as pessoas com autismo. Se a atividade com legos for exclusivamente de lazer e a conseguir realizar sozinho, observe se a partir de certa altura o seu filho não estará a usar os legos e a atividade como meio de autoestimulação ou de forma obsessiva. Por isso, um dos princípios que procuro seguir é também variar as atividades e gerir o tempo em cada uma delas. 

Toda a aprendizagem que ocorre, durante o tempo de lazer, é um bónus porque neste período o mais importante é passar um bom tempo com o Filipe sem estar preocupada em ensinar. Relaxar também é importante nas atividades que fazemos neste tempo em família. 

No início desta já longa caminhada, eu ficava muito ansiosa para ver o Filipe fazer muitas coisas. Com o passar dos anos percebi que a minha ansiedade não acrescentava nada ao desenvolvimento dele. Pelo contrário, cansava-me muito, acabava por sobrecarregar o Filipe com a minha preocupação e não usufruía da presença dele.

Concluí então, pela experiência do dia a dia, que devo fazer o melhor que consigo, aproveitando todas as oportunidades para ajudá-lo a desenvolver-se, pois os primeiros anos são fundamentais para estimular e estabelecer novas conexões neuronais, mas procurando sempre não esquecer que primeiramente sou esposa e mãe.

Disponibilizo gratuitamente alguns materiais que tenho utilizado com o meu filho que poderá baixar se forem úteis para si também:

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