Crise de Identidade: A Viagem de Regresso da Loucura de Género de uma detransicionada (Soren Aldaco)

Não me passava pela cabeça o que seria eles cortarem as minhas incisões e drenar manualmente os coágulos de sangue da minha cavidade torácica até ter passado por isso, até estar naquela cama de hospital com isso a acontecer-me. Na altura, pensei que ia morrer, a ferida estava a infectar e ninguém parecia realmente importar-se.

Penso que ninguém compreenderá as complicações que advêm destes procedimentos e destes tratamentos até as experimentarmos.

Comecei a identificar-me como transgénero aos 11 anos, iniciei a terapia de substituição hormonal aos 17 anos e aos 19 fiz uma mastectomia dupla. No próximo mês faço 21 anos. Na altura, tinha uma namoradinha que também se começou a identificar como transgénero, era três anos mais velha do que eu, éramos ambas Marias-rapaz, sentíamo-nos muito diferentes das outras raparigas. Por isso, quando soube que os sentimentos de mal-estar associados ao facto de ser rapariga tinham um nome, foi muito atractivo para mim sentir-me muito compreendida pela primeira vez na minha vida.

De repente, tinha algo em torno do qual construir a minha identidade.

A minha mãe foi mãe solteira durante os primeiros cinco anos da minha vida e o meu padrasto tinha uma deficiência motora grave, por isso eu vinha de uma vida familiar em que estava por minha conta para muitas coisas. Os meus pais gostavam muito de mim, preocupavam-se, mas não sabiam muito bem como serem pais. Por volta do 9.º e 10.º ano, conheci o meu pai pela primeira vez. Na verdade, falei com ele no Facebook e disse-lhe: “Acho que és o meu pai”. Descobri que tinha uma irmã mais nova de cinco anos, que tem agora 10 anos e é uma das maiores alegrias da minha vida, e uma madrasta muito fixe. E eles, por terem uma mente e um coração muito abertos, viram a minha angústia em casa e sentiram que talvez apoiar-me e a esta identidade era a melhor coisa que podiam fazer.

Ouvimos muito: “Prefere ter uma filha morta ou um filho vivo?”, e era esse o tipo de mentalidade a que estavam expostos e a partir do qual agiram. Começámos a frequentar um grupo de apoio pouco tempo depois, a minha mãe não gostou. Nesse grupo havia um subgrupo para jovens transgénero.

No subgrupo de jovens, falávamos sobretudo sobre quem ia começar a tomar hormonas a seguir, quem ia ser operado a seguir, que grandes percalços numa relação tinham acontecido nessa semana, quem estava a lutar contra a auto-mutilação. Quando estava a sentir coisas muito pesadas na minha vida pessoal e me relacionava com os outros jovens, comecei a pensar que este era mesmo o caminho certo para mim. Sentia uma espécie de inveja pelo facto de eles estarem a receber todos estes procedimentos, todos estes modos de afirmação que eu não estava. Havia também um enfermeiro no grupo cujo filho era transgénero e acabei por ir vê-lo.

Logo na minha primeira consulta, ele deu-me uma receita de testosterona. Eu estava a tomar 11 medicamentos diferentes e todos eles eram mantidos pelo mesmo enfermeiro, que nem sequer era médico mas um enfermeiro, que me receitou testosterona e bloqueadores de estrogénio.

O início da minha transição social e o início da minha transição médica envolveu eu estar numa relação com outra pessoa trans. Como seres humanos, somos muito impressionáveis, a minha relação com esse parceiro não foi muito boa e acabámos por nos separar em poucos meses. Eu estava a ser operada, por isso foi numa altura bastante traumática da minha vida. Quer dizer, logo a seguir à pandemia, logo a seguir a uma relação bastante tumultuosa e, claro, o meu cirurgião tinha-me dado uma lista de verificação de tudo o que precisava, aqui estão algumas recomendações de coisas a dizer, foi como se tudo tivesse sido preparado para mim.

Depois disso, comecei a sofrer complicações graves, reparámos nas nódoas negras quase de imediato e, apesar de termos enviado fotografias para a linha médica que nos foi dada aquando da minha alta, não fomos levados a sério de todo. Acabei por ir às urgências depois de ter sido ignorada três vezes. O dia 23 de junho de 2021 foi bastante horrível, passei oito horas nas urgências sozinha, tiveram de abrir as minhas cicatrizes, tiveram de coser drenos, lembro-me de terem enfiado um cotonete no buraco que abriram e de terem de eliminar os coágulos de sangue de forma agressiva.

Lembro-me de não ter tomado nenhum medicamento para as dores na altura, os meus cirurgiões não acharam que fosse assim tão grave, mas ao mesmo tempo eu sabia que tinha sido enganada, que isto não era normal. Eu, com 19 anos, não devia estar a passar por aquilo.

Depois disso, continuei a viver como homem durante seis meses, mas quando me mudei para Austin, para estudar, acabei por ter aulas de Sociologia. Aprendi como é que desenvolvemos um sentido de identidade e, na verdade, desenvolvemo-nos principalmente através de assumir o papel do outro, através de um modelo.

A minha irmã mais nova é o meu orgulho e a minha alegria, acho que dei um passo atrás e pensei “e se ela viesse ter comigo e dissesse as coisas que eu digo a mim própria, e se me dissesse que achava que o seu corpo estava errado, quando eu sei, de facto, que ela é perfeita, que não há uma única coisa nela que ela precise de mudar”. É tão difícil falar sobre ela, pois amo-a tanto.

Senti que, pela primeira vez na minha vida, tinha uma chave para me abrir, para talvez curar algumas partes de mim que eu pensava que iam ficar partidas para o resto da minha vida e dei-me a oportunidade de me aceitar como eu era, sem as drogas, sem a necessidade obsessiva de me policiar.

Comecei a detransição médica antes da detransição ideológica porque a atrofia vaginal, as flutuações hormonais que não eram apenas mensais, mas semanais, eram demasiado para mim. Não tenho a certeza se sou ou não fértil, porque quando fui à ginecologista depois de ter deixado de tomar hormonas de sexo cruzado, ela disse que íamos ter de esperar que passasse basicamente pela puberdade 3.0 para saber o que se passava.

Sei perfeitamente que, apesar de nunca ter querido ter filhos biológicos, quando estava a passar por estes tratamentos e procedimentos, é certamente uma possibilidade e algo que eu consideraria fortemente quando estivesse financeira e emocionalmente estável no futuro. E tenho partes bastante significativas disso em que nunca poderei participar agora, como a amamentação.

Não creio que uma criança seja capaz de saber se o seu estilo de vida futuro vai ou não estar alinhado com a maternidade, a paternidade ou a parentalidade em geral. E estas crianças que não deveriam estar preocupadas com o sexo nessa idade, mas que podem estar preocupadas com o sexo daqui a 10 anos, não sabemos realmente como é que isso vai ser para elas: algumas delas podem nunca ser capazes de ter orgasmos, algumas delas podem ter um desconforto intenso devido a complicações cirúrgicas, porque sabemos que a taxa de complicações da cirurgia de mudança de sexo é desconfortavelmente elevada.

Por vezes, a resposta com compaixão é aquela que estabelece limites firmes. No final de tudo, é preciso ser capaz de discernir entre facilitar comportamentos auto-destrutivos e ajudar. O facto de me ter dado acesso a certos medicamentos, de me ter dado referências de quem eu pedisse, não me ajudou a curar, mas sim a afirmar a minha ilusão.

Sabendo o que sei sobre a minha história e o que sei sobre as histórias de outras mulheres da minha idade, de outras pessoas que detransicionaram, penso sinceramente que, nos próximos 10 anos, poderemos assistir a outro movimento do género “me too”, em que as pessoas falam das suas experiências.

Ainda estou longe de ser perfeita, quer dizer, acho que todos nós estamos, ainda me debato com a minha saúde mental […]. Agora, quando sinto uma emoção negativa, como depressão, ansiedade ou disforia, aceito-a, digo que isto é muito difícil e dou a mim própria a compaixão que desejava ter quando era criança e que pensava estar a receber por ser afirmada na minha identidade de género.

Apercebo-me agora que posso dar isso a mim própria e que preciso de o fazer para não sofrer como eu sofri durante tanto tempo.

Tradução: Maria Azevedo (associada)

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