(2) Ensino doméstico: O busílis da nova portaria

Manuel e Leonor, 7 anos, 2º ano
Foto: José Carlos Carvalho

A família de Joana Gomes já entrou nesta realidade em crescimento ao abrigo da portaria 69/2019, que veio regulamentar a lei de 27 de Junho de 1949, com várias adendas ao longo das décadas. E, por isso, nem se importa de cumprir as novas regras, como ter de pedir autorização à direcção da escola em que inscreveu os filhos para aderir a esta via de ensino ou assinar um protocolo de colaboração. Aliás, de vez em quando até pede à tutora designada pela escola os testes e algumas fichas para a auxiliar em casa. E tem três dossiers, impecáveis, com tudo o que lhes ensina, prontos a serem mostrados, se for caso disso. “Se sentirem que estão bem entregues, não levantam problemas”, assegura.

Para quem já trata o ensino doméstico por tu, esta questão do pedido de autorização é um busílis legal, assim como a exigência do grau de licenciatura para se poder ensinar os filhos (antes, só se pedia que tivessem concluído um ciclo acima daquele que leccionavam). Aliás, a associação Movimento Educação Livre (MEL), criada em 2011, fez já um pedido de fiscalização da portaria ao Tribunal Constitucional e um parecer ao provedor de Justiça. Sílvia Cópio, presidente, deseja “a impugnação da norma, reconhecendo o impacto negativo que as novas medidas já provocaram junto de algumas crianças e jovens”. Entretanto, a resposta ao parecer foi negativa, alegando o provedor que é ao Estado que cabe garantir a liberdade da criança – afirmação da a qual a associação discorda em absoluto.

Por outro lado, João Costa, secretário de Estado da Educação, justifica a criação desta portaria com alguns dados preocupantes que foram chegando ao ministério. “Tínhamos de controlar as situações irregulares. Deram-nos conta de vários casos de ensino privado falso, em que pequenas escolas foram criadas sem certificações ou regras de segurança. E também histórias em que as crianças eram retiradas da escola para que as marcas dos abusos de que eram vítimas não fossem visíveis. E ainda algumas meninas de etnia cigana que saíam do ensino regular para casar, por exemplo.” Os directores apercebiam-se de reais situações de abandono e quando as crianças iam prestar provas, no final dos ciclos, já era tarde. “Não passavam, porque não sabiam nada.” Com a nova portaria, os alunos do ensino doméstico podem utilizar os espaços comuns da escola, como o ginásio, a biblioteca, ou ir às visitas de estudo. Mas poucos o fazem.

Apesar das críticas de que foi – e continua a ser – alvo, João Costa recusa que a norma seja um ataque à liberdade de escolha das famílias, porque “tudo correrá bem se apresentarem uma boa proposta educativa. Aliás, ainda não me chegou nenhum reporte de recusa não fundamentada.”

A antropóloga Catarina Marcelino, especializada em temas de igualdade, alinha pelo mesmo diapasão. “Era urgente regulamentar esta realidade, porque não havia controlo ou tutoria das escolas. Agora, com estas regras, gera-se mais segurança e previnem-se situações questionáveis em alguns grupos religiosos e algumas minorias étnicas.” Na sua opinião, este mecanismo só deve ser utilizado quando há mesmo necessidade, em casos de doença ou deslocações permanentes. “Sempre que pode, a criança deve estar no espaço da escola, por questões de socialização.”

Esta é a crítica mais comum. No entanto, a maioria dos pais que optam por esta via de ensino está bem ciente do problema. E é por isso que se esforça por integrar os seus filhos em vários grupos, fora de casa. Alexandra Nascimento, da Associação Nacional de Pais em Ensino Doméstico (ANPED), conta que diariamente recebe e-mails de famílias que querem enveredar pelo ensino doméstico, com muitas dúvidas. Agora ainda têm sido mais, pois cada agrupamento está a actuar de forma diferente e, nesta altura do ano, ainda há miúdos que não têm a sua matrícula formalizada. “Foram dois anos de debate muito intenso por causa da portaria e, por isso, temos descuidado um pouco do nosso contributo para estimular a socialização entre os alunos. Mas já organizámos férias em parques de campismo, visitas a ateliers de artistas, palestras informais sobre determinadas profissões…”

Tome-se o exemplo de Odin, 6 anos. Desde que nasceu que os pais concluíram que não o queriam, nem ao irmão, Aron, 4, num tipo de escola que lhes suga todo o tempo para a aprendizagem, sem dar espaço para a criatividade, a brincadeira e o acompanhamento por parte da família. Carla Santos e Duarte Cera, 35 anos, doula de profissão e músico, não descuidam nunca a socialização, como se verá mais à frente. “Quisemos mesmo ter filhos e estar com eles”, afirma Carla, enquanto mexe o feijão preto que hão de almoçar.

No canto que arranjaram para eles aprenderem, há imensos livros escolares, que uma amiga professora lhe fornece (os alunos no ensino doméstico não têm direito aos manuais gratuitos como os outros estudantes), um esqueleto em tamanho real, muitos jogos, plasticina, papel, canetas, lápis e desenhos pendurados, como nas paredes de uma escola do primeiro ciclo. Enquanto Odin faz contas de Matemática, o seu irmão mais pequeno pinta. As manhãs são quase todas passadas assim, com alguns intervalos para comerem bolachas de arroz com manteiga de amendoim ou tocarem bateria. Carla vai seguindo os manuais, com a liberdade que decidiu imprimir a esta aprendizagem. Sempre com algum receio de que chamem Odin para a escola, porque agora podem fazê-lo, com poucas justificações e apenas com dez dias de prazo para ele se apresentar.

No horário que está bem visível à entrada desta casa, em Alcabideche, percebe-se como a agenda é carregada de actividades fora de casa. À segunda, há natação com outras famílias de ensino doméstico; às terças e sextas, encontram-se todos num espaço ao ar livre, actividade que combinam num grupo de WhatsApp; as quartas e quintas são destinadas a museus, teatros e exposições. “Nunca vi lutas entre eles, porque estes miúdos não estão comprimidos como na escola e são muito pouco orientados para a competição ou comparação”, garante. E depois ainda há o Conservatório Nacional, onde Odin anda na percussão, iniciação musical, expressão dramática e coro, com mais dez alunos.

Se às vezes está cansada, Carla pensa que mais vale sentir-se assim, mas com eles por perto, do que tê-los enfiados em Actividades de Enriquecimento Curricular, até ao final da tarde. Ainda assim, está sempre a avisar: “Quando quiserem ir para a escola, vão.” Mal ouve a mãe dizer esta frase, Odin apressa-se a complementar: “Nunca quero ir!” No 4º ano, terá de fazer provas de equivalência a todas as disciplinas e, mais tarde, exames nacionais na escola em que estiver inscrito. Nada que assuste esta família.

Descodificador

Ensino doméstico
É praticado em casa do aluno, por uma pessoa que com viva com ele. Rege–se pelos mesmos calendário escolar, matérias e até manuais.

Ensino individual
Quando um professor diplomado ensina um único aluno, fora da escola.

Ensino à distância
Funciona através de uma plataforma digital, com salas de aula virtuais.

Continua: (3) Ensino doméstico: A escola não substitui a família

Fonte: https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2020-03-07-ensino-domestico-o-que-acontece-quando-a-familia-decide-nao-mandar-as-criancas-para-a-escola/?fbclid=IwAR2CFOvkl66ul5jwZJlJ1GOMzuATmWuwznEPpXkO-lEF4AJe3UKJDImdJEQ

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